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Pai e Mãe


Pai e Mãe

Todas as vezes em que papai
morreu, mamãe não abiu-lhe as portas.
Deixou velas acesas para que ele retornasse...
Mas, eu não sei exatamente se haverá essa volta.
Papai sempre soube distinguir bem
o lugar do prego e do chapéu.
Portas lhe foram cerradas
E eu ainda ouço suas palavras - pássaro que voa baixo não alcançará os céus.

Quando a gaiola viveu trancada
Ele encontrou seu novo jeito
de voar. Agora,
Volta em promessas.
Volta, em cartas e encartes
de lembranças
Onde tudo se resume a ilusão.

Quando aperta a saudade
Mamãe chora com as estrelas.

É triste vê-la chorar.
É muito bela e tem paciência de ouvir.

Ouve, naturalmente, o silêncio
Mas restringe-se aos lamentos
e ao medo do vazio.

Já  não dorme.
Perdeu o tempo exato do sono.

Baila entre horizontes e aguarda
a ultima estrela contornar os montes
para amanhecer feliz.

Depois de uma espera ansiosa,
Papai prometeu levá-la ao cinema.

É o pássaro arisco que não se lembra
da última vez em que entrou
na sala.

Ouve a trilha
Descarta as histórias
A presenteia com livros
A ilude com temas e cenários, porém,
nos romances. Oh, insensatez!

Conhecedor das belas palavras
Não abriria suas asas
outra vez.

Não tocou mais o coração da casa,
desde quando foram-lhe suprimidas
as chaves e alguns penhores.

Desde quando ele afogou-a
na chuva, E, juntos, perderam
os seus pontos cardeais.

Cada um tomou o seu norte.
Agora
Viajam com as estrelas
Deitam-se com os rios e dormem
entre pedras astrais.

Bebem porres de correntezas
E corredeiras,
mas não recorrem à bússola.

Que pecado tão grande, Mamãe
cometeu
ao seu grande amor?

Ela resiste às suas ausências
deliberadas
Morre e acorda apaixonada
Agarrada às palavras
que ele lhe dissera, antes
de partir.

Está escrito em seu diário:
Vinde a mim, miseravel.
As pedras
que em mim jogastes feriram
mais a ti do que a mim.

Vinde, pois meu jugo é suave
E o meu castigo será eterno.
Ainda tenho vestígios de medos
Aceito transfusões de segredos...

Os guardarei comigo, junto
às desilusões que mataram as esperanças, sem expelir completamente os venenos
que não eram só meus.

Papai continua morto, mas de olhos
bem abertos. A estrada é longa
E o caminho deserto.
A gente nunca encontra o tempo certo
de partir.

CK

Carlos Kahê
Enviado por Carlos Kahê em 07/03/2025
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