Verão 1968
Verão 1968
No verão de 1968, levaram o meu pai e eu fiquei estático como o sol.
Abri o olho no fundo de uma nuvem de chuva, não sei se estava nu ... Estava despido de ideias.
O frio da manhã mergulhou em meu peito; encheu-me e apertou a minha garganta de uma sensação,
sem qualquer sensação de efeito.
Eu tinha o coração comprimido, e os olhos embaçados, assustados com todas aquelas maquinações.
O frio pendia do meu coração.
Da minha carne escorria uma força emitida por uma torneira esquecida, mas sempre aberta.
Os meus joelhos se moviam, ajoelhados no gelo, onde eu gritava, perdido de minha fala.
Os meus testículos se revestiram de gelo, de caixas de gelo que escorriam pela minha espinha,
ali mesmo na sala.
Meu pai estava vestido com o melhor terno de sua consciência.
Terno cinza, riscado das fibras vermelhas de todo o seu passado. Estava elegante. Era a pura essência.
Não estava triste. Não estava radiante, embora o seu olhar se distanciasse de algo que deixaria de existir.
Abotoou o casaco com seus dedos largos, o rosto inquieto e por barbear...
Ele estava inclinado para a frente, em atitude de quem tenta reavivar um passado.
Um passado longe, não é um passado ausente.
Todos ali na sala poderiam ver que estava no chão a nossa tristeza.
A incerteza impregnava todos os cantos da casa e era aquela coisa medonha metida numa capa,
revestida de atitude exagerada, e de surpresa.
O braço de papai erguido, inerme, pendendo do pulso de outro homem, já estava ligado ao homem
que o conservava cativo.
O homem gentil que, gentilmente, levantava a mão para acender o seu cigarro, tinha sua mão arrastada,
protegendo o fogo ... E nós, todos pendentes, nos movendo, até onde poderia se mover aquela ação de escárnio.
Aquelas visitas vieram apagar o fogo da nossa alegria.
Aquela atitude, em nós ficaria guardada entre as lembranças implacáveis.
Na sala, ninguém respirava.
Soquei o ar, quando mirava a cara da justiça!
Sacudi os pés, sacudi os punhos, machuquei alguns dos meus conceitos.
Foi bom, porque reencontrei alguns dos meus pecados.
Depois daquele dia, fomos arrastados pela vida que entrou pelas nossas vidas.
Fomos arrastados pela realidade que dominou as nossas noites de insônia.
Vivendo trancados, debaixo da escada do nosso destino, passamos a viver alimentados à base de pilhas de jornais.
O meu pai foi empurrado para fora das nossas vidas!
Ficamos de joelhos, parados, assistindo a tela da nossa ira.
O sentido de nossa vida se calou, debaixo de uma ordem simplória com alça-de-mira.
Tudo ficou terrivelmente silencioso ... Não voltamos a vê-lo nunca mais.
CK
Carlos Kahê
Enviado por Carlos Kahê em 28/01/2025