Kahê em pessoa
Potências que existem em nós.
Textos
O trem do sertão: monumento de grãos e de minérios


Na imensidade deserta,
Azul,
do sertão,
Existiam a fé e a esperança.

Depois chegou a improvável companheira
A dúvida,
que pariu, nutriu
e desenvolveu entre nós,
a fria desconfiança.  

Filha da dúvida,
a insegura e dissoluta desconfiança
semeou o medo e a pressa.

Medo mais do que pressa.
Medo de você nunca vir

e dúvida,
quanto a ser só mais uma promessa,

E desconfiança de que seria
apenas uma notória vontade a se destruir.

Tanto tempo perdido!...

Quantos de nós morremos à sua espera?!
Casas,
famílias e certezas entraram em ruínas.

Desprezos silenciosos
trancaram a boca dos homens

E as vontades foram passando
por cima dos nomes,
passaram por cima dos ânimos

por cima de lendas, e entraram
pelos cordelismos... daí, a frustradas
indagações.

Um dia veríamos o lagarto vermelho
deslizar rasteiro
sobre os lençóis azuis do cerrado.

E foi justo ontem que ela acionou
o primeiro apito.

Hoje, ele é o assunto
E já parece eternizado.

O trem mal começou a deslizar
pelas férreas linhas tortas.

Todo o sertão correu às portas

para ver o lagarto vermelho deslizar
sobre os trilhos ... e agora é quem vai
nos carpir.

O trem cruzou o sertão azulado.
No primeiro apito, ele mexeu
com o emocional e o imaginado,

E ganhará mais nomes do que dicionário,
E será amado e exaltado, e depois
de tudo posto e reposto,

Será cordelizado na trilha que ele
haverá de cumprir.

Foram anos, décadas, gerações... à espera desse momento.
Hoje, ao vê-lo emergir de um imenso pátio de cimento, parece um ser mecânico maior.

É um grandioso monumento!

Quando um trem desse se move,
Ele move o povo a correr para livros
e cartas.

Põe as moças risonhas a correrem
às janelas, e as mulheres a incentivarem
os seus homens orgulhosos,
a correrem para as ruas...
Nós já fazemos parte do mapa!

Estou abismado.  
Mais do que um simples trem
Vejo um bicho partir desentranhado,
Enfim, arrancado dos nossos sonhos!

E o gigante que vai cruzar os rios, caatingas
e cerros.
Um Deus-Monstruoso que levará a vaidade do sertanejo a se chocar contra montanhas
e os paredões de pedra.  

O bicho parte desentocado de nossas mentes, sozinho ele faz a tarde mudar de cor
E faz a prosa mudar de assunto, e nestas
ele vai estar sempre junto,

A poetizar com rosas, convicções
e certezas de diferentes discursos.

Até já se ouve comparações com o passado.

As circunstanciais vontades transmudaram-se
para sorrisos
E as coisas voltaram a existir,
como distantemente fora sonhado.

O monte que se destruía, está se reerguendo,
pela alegria.

As histórias de amor saíram dos baús
e mudaram de cidade.

O mercado de desejos recebeu com euforia,
a notícia de que o mar vai invadir
o cerrado.

Nossa Senhora do Livramento,
Livrai os nossos caminhos e sentimentos
de indecorosos pecados!

Meu Bom Jesus da Lapa,
Conduza os nossos grãos e minérios,
Pois tudo que entra e sai do nosso sertão
tem esse bendito mistério.

Tudo que nasce aqui, um dia terá de partir!

O que fica no sertão são seus ministérios
e os cerros azulados.

Os seus filhos são destemidos e brilhantes
E que cruéis e louváveis instintos
eles têm de seguirem adiante?!

De irem para bem longe,
Para, lá distante dos seus chãos, os seus sonhos construir...

Num dia de luto, foi Waldick.
Nas pétalas das margaridas,
foi Guarabyra.
Numa noite de frevo foi Moraes.
Numa chuva de neblina
foi Anísio Silva.
Anísio Teixeira foi muito mais ...

Glauber passou no cinema,
E nas palavras eu coloquei Wally!...

Num Grande Encontro de gênio e violeiros
o mundo conheceu primeiro, Gilberto Gil
Depois Elomar e Xangai, o filho de Janir.

Eu fico por aqui,
beirando os canteiros de flores
que alumbram as praças das cidades sertanejas.

Fico admirado do trem que vai roçando,
cortando,
beijando,
resfolegando...
rompendo o Norte,
no sentido Sul.
O trem vai
cortejar as entranhas de Brumado,
Sincorá e Tanhaçu.

Quem viaja nos vagões, já conheceu a Lapa.
O mundo onde São Francisco faz a sesta.

O trem levou o sertão a entrar no mapa,
O mundo onde o Bom Jesus faz sua festa.

Santa Maria teceu no hemisfério
uma barreira de passagem de grãos e de minérios.

Os valores do sertão, enfim, vão conhecer
o mar.

Quando deixei Guanambi, tu estavas
quieta, dormitando.
Lavei os meus olhos de ouro, no rio do Antônio ...
e a distância era tanta,
que eu já não podia mais
te ouvir.

Pensei no meu avô surdo,
querendo escutar
Que Caetité é a capital do urânio!

Que hoje, viajar, para o sertanejo
não é mais peleja, nem pandemônio.

Que partir, hoje, é sinônimo de não ter
mais porquê ir ...
Que é o mesmo que perguntar,
"Quando ocê vai vim?"

Que lavra benfazeja!

Puseram tintas novas nas igrejas.
Pintaram com os nossos sorrisos, as fachadas das casas.
A alegria é tanta de saudar a todos
no caminho ...
Salve, Salve, Dom Basílio ...
e o mundão azul vai se espalhando,
distante ...

Nossa Senhora desenhou no céu
um roseiral
com um rio de contas.

Na próxima curva, já terei um rosário
de tanto fazer conta das almas
que partiram
sonhando com o trem.

A Vila Imperial de Conquista ficou distante
e me deixou saudade.
Uma saudade bo, só pela vontade
de beijar a crista dos seus montes.  

O trem percorre cidades convertidas
em rosas  que crescem sobre os horizontes

E vai aonde a poesia tece com a prosa
a saga dos novos dias.

A tarde se fecha, e
eu ouço um cavalgar
sob o véu da noite.

O sertanejo apeia para ouvir o que ele
nem sabe o que é.

A máquina resfolega e apita
e se enche de luzes.

O sertanejo dispara para avisar
que um trem dos "demônio"
tocou o chão de Jequié!

Daqui em diante os vagões repletos
vão descer cantando, apitando,
acordando as cidades e os cachorros
que dormitam sobre a relva.

O trem vai levar adiante o seu destino.
Vai encurtar distâncias, vai correr
pela densa mata cacaueira...

Vai beijar os ribeirinhos dourados,
que murmuram perto dos trilhos.

Estamos no Sul da Bahia!

O chão onde as acácias rosas,
as matas fechadas e os frutos dourados
simbolizam a nossa fé!

Num piscar de olhos, ele deixou para trás
a lagoa encantada,
as almas-da-serra-grande...
e depois
de uma curva bem fechada,
o bicho  se entregou nos braços de Gabriela.
Em um belo mar azul, entre Ilhéus
e Itacaré.

CK

Carlos Kahê
Enviado por Carlos Kahê em 09/01/2025
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